Com
a certeza de que Seu Fernando levantaria faminto, Isaurinha já havia
se levantado para ferver o café. E assou bolo de milho, pão salgado
e fez uma jarra de suco com doze laranjas que pedira para Seu
Fernando comprar pessoalmente, no dia anterior, no mercadinho do
bairro. Do amor que expressavam um pelo outro não se via igual.
Após
tomarem o café, Isaurinha e Seu Fernando teriam um dia cheio. Tanto
a velha quanto ele, aposentados, ainda davam duro trabalhando dentro
e fora de casa. Isaurinha, para complementar a renda, minuciosa com
as mãos, fazia bonecas de porcelana, que, junto com o esposo, vendia
aos finais de semana, em uma feirinha de artesanato. E enquanto as
fazia, Seu Fernando cuidava dos serviços da casa: varria o chão,
lavava e passava a roupa, montava no fogão para cozer o almoço, a
janta, recolhia o lixo da cozinha e dos dois banheiros do sobrado
alugado, e, como se ainda lhe sobrasse o tempo de uma vida inteira,
roçava a grama do jardim, religiosamente, uma vez por semana. Reunia
disposição para todas essas tarefas porque se sentia envaidecido
como homem e não queria cansar Isaurinha. Era um casamento de
décadas, daqueles amores que só cresciam.
Sábado.
Isaurinha e Seu Fernando vendiam as bonecas, na praça, na feirinha
de artesanato. Grupos de meninas se reuniram em frente a barraca tão
encantadas com a mercadoria que sequer piscavam ou fechavam a boca.
Puxavam as saias de suas mães, as calças jeans de seus pais que
haviam acabado de sair do trabalho e pediam para que eles as
comprassem não apenas uma mas todas que apontavam com seus dedinhos
miúdos. E quando finalmente compravam uma ou duas explodiam de
alegria.
-Você
quer uma dessas bonequinhas, minha filha?
-Sim,
papai.
-Ótimo
então! Qual você quer? Pode escolher.
-Quero
todas, papai.
Mesmo
sob reclamação, um dos pais não comprou todas que a filha quis,
mas comprou logo as cinco mais trabalhadas que Isaurinha havia
atravessado a sexta-feira fazendo. Além das que vendeu, levara
outras quarenta e cinco de diversos preços.
Seu
Fernando não era menos carinhoso no momento da venda. Atendia os
clientes com dedicação e entregava as bonecas que a velha amada
costurara como se fossem filhas, filhas que nunca tiveram, e ainda
pedia à meninada, com voz doce, que cuidassem delas de forma igual.
-Aqui
está a sua filhinha. - dizia. - Cuide dela com muito amor.
Certa
vez, permaneceram na feirinha até o meio da tarde, quando já havia
passado um pouco o horário do almoço. Antes que recolhessem as
bonecas dentro de uma mala para retornarem para casa, Isaurinha se
deparou com uma menina mal vestida, acompanhada por um senhor que
aparentava ser seu avô, se aproximando da barraca e olhando-as
hipnotizadamente. Então, perguntou se ela havia gostado de alguma
delas, se as achava bonitas.
-Sim.
Sim. Sim. Elas são muito charmosinhas. - respondeu, a menina mal
vestida.
Cheia
de compaixão, Isaurinha a presenteou com uma das bonecas que haviam
sobrado das vendas. Primeiro, disse à menina que apontasse a que
mais achava bonita, porém, ao ver sua vergonha em escolher uma, não
hesitou e ofereceu-lhe a mais graciosa, que era também a mais cara.
-Promete
que vai cuidar dessa charmosinha com muito amor e carinho, minha
querida?
-Sim.
Sim. Sim.
O
senhor que acompanhava a menina, enormemente agradecido pela bondade
de Isaurinha pois não poderia comprar uma daquelas bonecas
artesanais, se ajoelhou diante do casal e começou a chorar.
-Por
quê está chorando, meu bom amigo? - Seu Fernando perguntou.
-Por
que vocês foram muito bondosos. Eu e minha neta não estamos
acostumados a ter um tratamento assim.
-Não
estão? - Seu Fernando o encarou com otimismo. - Se acostumem então
porquê os bons, mesmo em tempos sombrios, foram e sempre serão a
maioria.
Assim
sendo, o senhor agradeceu ao casal e foi embora de mãos dadas com a
menina mal vestida, que, feliz, abraçava calorosamente a boneca que
havia ganhado.
Logo
em seguida, Isaurinha e Seu Fernando recolheram as bonecas dentro da
mala e foram embora para casa, onde ainda teriam muito trabalho
naquele dia. No que se preparavam para deixar a feira, Isaurinha
avistou uma aranha armadeira sobre as pétalas amarelas de uma
delicada flor. Recolheu a aranha dentro da cabeça que havia se
desprendido do corpo de uma das bonecas.
-Podemos
cuidar dela, querido? - perguntou segurando a cabeça de porcelana
com a aranha dentro.
-Claro,
minha vida, como quiser.
Tratavam-na
como um animal de estimação. Nos primeiros dois dias, Seu Fernando
arrumou um vaso de flores vazio para que Isaurinha forrasse o fundo
com algumas folhas e gravetos, fazendo o vaso de casa para a aranha.
Zelosa, colocou até mesmo uma tampinha que enchia de água caso a
mesma sentisse sede e insetos caso tivesse fome, preguiça de
caçá-los.
Isaurinha
a mimava. Conforme os dias passaram, as horas transcorreram, a
aranha, então, revelou-se única, foi se desenvolvendo e crescendo
muito acima do imaginável. Já não vivia mais no vaso, circulava
por todos os cômodos do sobrado. A criatura, para a graça de todos
que a viam fazendo companhia ao casal, ganhara o tamanho de um
cachorro da altura dos joelhos de Isaurinha.
Isaurinha
batizara a mutante com o nome Vitória. Achava propício esse nome.
-Quer
dar uma voltinha pelo bairro, Vitória?
-Não
deve ser isso, minha vida. Não. Não. Já sei que é! Vitória está
com fome. Vou lá fora caçar mais insetos e já volto. - Seu
Fernando voltava sempre com um pote cheio de mariposas e borboletas
que capturava ora na praça, ora em uma mata próxima do sobrado onde
moravam.
Assim
era a rotina da aranha: depois de alimentada, levavam-na para passear
e a apresentavam com todo orgulho para os amigos, vizinhos e
desconhecidos que não se mostravam menos carinhosos em vê-la.
Diziam, o casal: Chama-se Vitória. Ela é muito querida. Cresceu de
amor.
Foi
então que certo dia, quando a vida corria normalmente, a rotina
fluindo, o céu cobriu-se de cinza e uma chuva forte lavou a cidade
durante a tarde, a noite e boa parte do dia que se seguiu. Não havia
ninguém que não tivesse a vida sido afetada pelo temporal ou que
não conhecesse alguma pessoa igualmente prejudicada. Assim que a
chuva começou, um cão rotweiler, fugindo do aguaceiro, se abrigou
na varanda do sobrado e latiu com medo dos sucessivos trovões, como
quem pede para entrar. Isaurinha e Seu Fernando, ao ouvir os latidos,
solidários, abriram a porta rapidamente para que entrasse e se
abrigasse da chuva.
Adotaram
o cão rotweiler. Seu Fernando o batizou com o nome Gilbert. Gilbert
e a aranha Vitória tornaram-se tão amigos e leais um para com
o outro que não se desgrudaram um segundo desde então.
Mais
um sábado, Isaurinha e Seu Fernando arrumavam as últimas bonecas
dentro de duas malas para vendê-las na feirinha de artesanato da
praça. -Gilbert e Vitória, vocês querem ir com a gente? - Seu
Fernando perguntou aos dois que já os esperavam, ansiosos, na porta
do sobrado. -Claro que querem, papai. - Isaurinha respondeu por eles.
Brincou. - A gente quer muito, não é mesmo crianças? - não
queriam deixá-los em casa, desprotegidos e sem companhia; Gilbert e
Vitória, então, foram juntos com o casal.
Logo
que chegaram na praça, enquanto o casal ajeitava as bonecas de
porcelana na barraca, o cão e a aranha mutante se juntaram aos pés
de uma árvore, quietinhos para que assim não distraíssem os
clientes e não atrapalhassem as vendas. E por mais que a lógica
dissesse o contrário, nem de longe atrapalharam as vendas pois não
espantavam ou distraíam os clientes, Gilbert e Vitória pareciam
funcionar como atrativos para que a meninada se aproximasse e se
interessasse pelas bonecas. As vendas se mostrariam um sucesso maior
do que a semana anterior. Tão prontamente a meninada se aproximava,
Isaurinha era carinhosa com todas e também com aquelas que já se
apresentavam dizendo só estarem admirando-as. Seria assim na semana
seguinte da venda seguinte, com Gilbert e Vitória aos pés da
árvore, enquanto vendiam todas as bonecas que haviam levado à
feira.
E
em uma dessas vezes em que atenderam a meninada uma em especial se
aproximou então da bondosa Isaurinha e do generoso Seu Fernando.
-A
senhora se lembra de mim? - perguntou.
Isaurinha,
mesmo com uma ligeira suspeita de conhecê-la, não se lembrou. A
menina mesmo é que respondeu a própria pergunta:
-A
senhora me deu uma boneca de presente quando eu estava junto com o
meu vovô. Se lembra de mim agora?
-Sim,
agora me lembro. Mas onde está o seu vovô? Está sozinha?
-Meu
vovô morreu, mas não estou sozinha porque ganhei uma mamãe.
Seu
Fernando, no que a ouviu, comemorou:
-Que
bom saber disso!
-Sim,
ganhei uma mamãe de coração. É assim que eu chamo ela. E ela
também é muito rica.
A
menina, de forma resumida, contou em seguida o que se sucedeu em sua
vida nos últimos dois meses. Disse que seu avô havia morrido e que
fora levada a um orfanato, onde, poucos dias depois, foi adotada.
-Eu
quero dar um presente para a senhora. - ofereceu uma bonequinha de
ouro cravejada de diamantes e outras pedras preciosas. - Por favor,
aceite.
-É
muito valiosa. Não posso aceitar. - Isaurinha recusou.
-Insisto
que aceite. - emendou, a menina. - A senhora foi muito boa comigo.
Foi mamãe quem sugeriu que eu lhe desse esse presente. A senhora
merece.
Assim sendo, ao lado de Seu Fernando, Isaurinha aceitou o presente. A menina sabia que a joia seria uma inequívoca ajuda financeira ao casal. Ao deixar a praça, despediu-se ainda de Vitória e do rotweiler Gilbert, que a observavam com ternura aos pés de uma das árvores da praça. Todos os personagens, às suas estranhezas, guardavam preciosas semelhanças.
Assim sendo, ao lado de Seu Fernando, Isaurinha aceitou o presente. A menina sabia que a joia seria uma inequívoca ajuda financeira ao casal. Ao deixar a praça, despediu-se ainda de Vitória e do rotweiler Gilbert, que a observavam com ternura aos pés de uma das árvores da praça. Todos os personagens, às suas estranhezas, guardavam preciosas semelhanças.
FIM.

Mais um conto pelo qual fico apaixonada, que transmite amor e compaixão. Fico sempre encantada com a sua escrita! :) Obrigada pelos contos maravilhosos que sempre nos traz!
ResponderExcluirBeijos
Pseudo Psicologia Barata
De Nada Bia, Sou eu quem agradece.
ExcluirVolte sempre.
Quero começar dizendo que logo nas primeiras linhas tive aquela coisa gostosa na qual o conto sai do papel (ou, no caso, da telinha rs) e salta pros nossos sentidos. Que vontade de tomar o café da Isaurinha! Agora vamos aos parabéns pelo conto incrível. Acho que o que mais gosto na sua escrita é a familiaridade com os personagens. Agora, ao findar a leitura, me sinto próxima do bondoso casal e dos seus engraçados animais de estimação. Até mesmo quero uma boneca. Incrível como sempre! Grande abraço.
ResponderExcluirGio, se me permite a intimidade, obrigado mesmo!
ExcluirFico enormemente feliz e satisfeito que curta o que escrevo.
Valeu!
Deveras interessante esse conto. A forma como apresenta o casal é um primor, e é curioso como os animais de estimação, especialmente o Gilbert, não tendo um papel fundamental na história, o dão certo "valor literário" a mais. Deveras curioso seu texto, Rob.
ResponderExcluirPuxa, Coletivo, de todos os seus comentários, este foi o que eu mais gostei, kkk.
ExcluirLegal que tenha gostado tanto assim.
Volte sempre!
“Os bons, mesmo em tempos sombrios, foram e sempre serão a maioria.” Fiquei encantada com a verdade dessa frase. Ainda que as mídias de forma massante só divulguem o caos, a dor, a violência, a maldade... Pessoas boas sempre existirão. Eu amei o amor envolvente desses dois. Detestei a parte da aranha, lógico! kkkk Mas amei esse toque de fantasia do conto. Eu fiquei imaginando as bonequinhas de porcelana da Dona Isaurinha e fiquei querendo conhecer os dois e tomar chá com eles no fim da tarde. Você é um escritor incrível! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado pelo comentário sensível, Eliziane, valeu mesmo!
ExcluirVindo de você, não esperava um comentário menos generoso.
Volte sempre, parceira!
Lindo conto. Muito bem escrito e delicioso de ler, fiquei encantada.
ResponderExcluirObrigadíssimo, Andy, volte sempre, kkk
ExcluirNossa Roberto, que incrível esse conto. Adorei a forma como você escreve e os detalhes colocado em cada linha. Realmente ao ler esse conto a gente se sente dentro da história e tem uma aproximação enorme com os personagens. Por mais difícil que as coisas estejam a esperança nas pessoas nunca pode deixar de existir.
ResponderExcluirUm grande abraço! 😘
Obrigado, Gisele, seu comentário me motivou a continuar escrevendo novos contos e criando novos personagens.
ExcluirAbraço forte.
Que exemplo de casal! Quanto amor, compaixão e solidariedade!! D. Isaurinha e S. Fernando têm em abundância esses sentimentos que podem distribuir com as outras pessoas. Fiquei fascinada pela história, pelo modo como você a escreveu! Cheguei a imaginar as bonecas e os bichos de estimação. Achei estranho o gosto pela aranha, rsrsrsrs. Parabéns pelo lindo conto!
ResponderExcluirAbraço.
Cidália, fico feliz que tenha gostado do casal que eu criei. Isaurinha e Seu Fernando são de fato muito possíveis de existirem, são muito reais.
ExcluirJá em relação a aranha, foi um toque surreal, fantasioso, que empenhei na história.
Volte sempre.
Mais uma vez venho te dizer que seus contos sempre me levam de volta a minha infância e este mais ainda.Amei a leveza e a doçura das suas palavra. Parabéns e continue a nos encantar.
ResponderExcluirPena que não tenho mais Uma Isaurinha é um Sr. Fernando aqui comigo. Muitas saudades mesmo.
Obrigado, Cássia, fico feliz que te agradei... e de novo, kkk
ExcluirAbraço forte.
Nossa, Roberto, que conto lindo! É gracioso e cheio de surpresas. Achei linda a mensagem final. Ser bom, é ter atitudes boas com todas as pessoas. É não esperar nada em troca, e mesmo assim, receber. Porque quem planta, seja o que for, colhe com mais intensidade. Por isso, prezo muito em plantar o que é bom. A vida dá muitas voltas!
ResponderExcluirParabéns!
Obrigado, Suellen Marques, concordo radicalmente com tudo que disse.
ExcluirFaça o bem, receba o bem!
Faça o mau, sofra até aprender a fazer o bem!
Abraço.
Ultimamente essas minhas andanças pela internet tenho conhecido diversos contos, mas este é muito bacana. Tem um ar nostálgico para mim e estou cada vez mais interessado nos seus textos. Parabéns!
ResponderExcluirAtt,
Gabriel José
Obrigado, Gabriel, legal que tenha correspondido as suas expectativas literárias, rs.
ExcluirVolte sempre, boy!
olá! gostei do conto, da clareza e leveza na descrição das coisas, confesso que quando entrou a aranha eu esperava algo macabro hahahah tenho pavor de aranhas então só consegui imaginar uma coisa bem sangrenta acontecendo hahahaha
ResponderExcluirO conto passa uma bela mensagem, colhemos aquilo que semeamos.
Obrigado, Raissa, volte sempre!
ExcluirE comente muito mais, rs.
Abraço.
Brother... O que posso falar desses seus contos? Quando não fico assustado fico extremamente apaixonado pela escrita. Linda histórias e com surpresas incríveis, parabéns pelo conto!
ResponderExcluirFranklin, amigo fiel e verdadeiro, obrigado pelo teu valoroso comentário!
ExcluirSenti que foi sincero e de coração.
Abraço e volte sempre!
Nossa, que historia mais linda de se ler! Não consegui desgrudar os olhos da tela por um instante! Que amor lindo do Fernando e Isaurinha, tão difícil hoje em dia essa cumplicidade que eles transmitem. Achei engraçado essa aranha mutante e fiquei imaginando como seria rsrs
ResponderExcluirBeijos
Obrigado, Renally, que bom que gostou, inclusive na parte em que descrevo Vitória, a aranha, rs.
ExcluirVolte sempre, será bem-vinda!