14 de setembro de 2017

De Uma Breve Vida Breve em Edvard Hespanhol (PARTE 3 DO CONTO).

imagem ilustrativa de conto em blog sobre a ditadura

Oi, pessoal, "De Uma Breve Vida Breve em Edvard Hespanhol! é o sexto conto da coletânea Quilômetro Cinza e Outros Contos de Cabeça e abaixo você confere a 3° parte. Os contos foram publicados na Amazon. Você pode comprar o eBook ($4,50), clicando AQUI, ou o livro impresso (USD15,50), que você compra acessando AQUI. 
Boa leitura! 


De Uma Breve Vida Breve em Edvard Hespanhol


Nunca se verá unanimidade nem nas mais sólidas maiorias. Uma parte considerável dos que se faziam presentes no comício era composta por gente como eu, que também sentia repulsa pelo regime. Diferentemente de mim até então, eles integravam grupos e fraternidades, debates marginais, movimentos anarquistas radicalizados, uns ou outros moderados no passado, revolucionários, engajados em manifestos por toda a República do Álamo. Rafaelo liderava o principal deles: um grupo anarquista que se extremava cada vez mais na medida que recebia novos companheiros ainda mais idealistas e engajados do que os demais. Em pouco tempo, o grupo liderado por Rafaelo já era o mais ativo da Cidade do Álamo, a capital da república, e era bom no que fazia, conseguindo manter em segredo do governo não apenas sua existência bem como a identidade dos companheiros. Rafaelo veio até mim e se apresentou. No que igualmente me apresentei, foi direto ao assunto, me convidando a fazer parte do grupo. Por mais que explícito em meu rosto o interesse pelo convite, pedi uns dias para pensar e Rafaelo me deu então um retângulo de papel com um número de telefone impresso para que eu o procurasse quando tivesse a resposta. Antes de se afastar de mim e desaparecer no meio da multidão, pediu somente que me apressasse a respondê-lo com o argumento de que o grupo tinha pressa. “A semana que vem será muito importante para nós, e queremos que participe.” - disse. Tal proposta mereceu dois dias valiosos de uma reflexão sofrida.

Enquanto Jupecê discursava no comício, o Secretário de Justiça ia pessoalmente em casa, acompanhado de um delegado, um defensor público e um promotor de justiça, para cumprir um mandato de prisão contra papai. Ainda dentro de casa, o delegado, após cumprimentar educadamente mamãe, o prendeu em flagrante, já o defensor público fingiu defendê-lo, dizendo uma ou duas frases sem muita conexão com a acusação que lhe era feita pelo secretário, e o promotor de justiça fez o papel de juiz, autorizando a necessidade de sua prisão. “O senhor está preso sob o manto da lei.” - disse, o promotor. Papai foi levado para um prédio anexo a Secretária da Casa Civil, acusado de conspirar contra a ordem pública. Ficou detido por um dia e dez horas quando foi encontrado enforcado em uma sala improvisada como cela, com um lençol amarrado no pescoço, pendurado na janela. Muito longe de já não ter desconfiado no momento que soube da morte de papai, mais tarde é que descobri verdadeiramente o porquê. Não foi suicídio como o regime havia atestado. Papai fora covardemente interrogado ao tempo em que era torturado até a morte, e o motivo de tudo era que não confiavam nele.


Fizemos uma cerimônia de sepultamento com todos os amigos presentes. Devastada, mamãe tirava forças de onde parecia não haver, do deserto inóspito de sua alma, para que se mantivesse firme e permanecesse ladeada a mim enquanto se prostrava diante do caixão. Até que o viu descendo à sepultura.


“Tudo vai ficar bem. Não é mesmo, Edvard?”


“Sim, mamãe. A gente vai superar mais essa perda.”


“Não será fácil viver sem o nosso Áries. Ele era o seu herói. Não é mesmo, Edvard?”


“Sim, mamãe, mas ficaremos mais fortes depois de tudo isso. Tudo vai voltar ao normal, prometo.”


Me dedicaria para cumprir a promessa que a fiz pelo decorrer dos próximos dias, porém, ainda durante o sepultamento de papai, percebi que não seria fácil fazer com que as coisas voltassem de fato ao normal. Jupecê Piccolo apareceu no cemitério para oferecer as condolências do governo pela morte de papai. Estava protegido por um pequeno batalhão de soldados que faziam sua segurança, além de uma dezena de homens que o acompanhavam aonde quer que fosse. Dirigiu-se pessoalmente a mamãe e disse que sentia pela atitude extremada de papai, que o seu suicídio era uma lástima para todos na república e que já ordenara uma investigação criteriosa, a fim de que se dirimisse de uma vez por todas as circunstâncias da tragédia. Para quem Jupecê, porventura, estendeu a mão, foi cumprimentado com respeito. Tinha total confiança de que mamãe e eu havíamos acreditado que papai se suicidara, que a sua morte se explicava por um ato injustificado de desespero. Antes que fosse embora, disse-nos ainda que não viera prestar a solidariedade de seu governo apenas, que uma praça perto de onde morávamos, aquela que havia discursado no comício, seria nomeada com o nome de papai como forma de homenageá-lo, que mamãe receberia uma pensão para o resto da vida e que a conclusão de minha formação universitária, a partir daquele dia, estava plenamente assegurada pelos programas estudantis do governo. Respirei profundamente para não explodir de ódio.


“Não será aqui, na frente de todo mundo, que vou te matar.” - pensei. - “Terei a oportunidade de me vingar no momento mais oportuno, bem lentamente.”

Fui para o quarto descansar um pouco ao voltarmos para casa, enquanto que mamãe voltou a mergulhar o dedo indicador da mão esquerda dentro de sua inseparável xícara de chá. Fazia meses, quatro para ser mais exato, que havia contraído uma infecção na unha que não sarava nunca e que não sabia ao certo como a havia contraído. Malcheirosa e esverdeada, se fora decorrente de uma micose, se limpando a casa ou cozinhando, nunca soube. O mistério se resumia no fato de que a unha podre, além de nunca sarar, se restringia a um único dedo, o indicador da mão esquerda, e que nenhum doutor dava jeito. Parecia coisa mandada pelo diabo.

Então, por conta própria, mamãe inventou uma solução caseira para tratar a infecção. Duas vezes por dia, de manhã e no fim da tarde, socava um dente de alho no pilão até ter formado um creme, depois, punha-o na xícara com um pouco de vinagre morno e mergulhava o dedo dentro da xícara, onde o deixava até que julgasse tê-lo desinfetado o bastante. Certa vez, ao vê-la com o dedo mergulhado na solução, não aguentei a curiosidade e perguntei:


“Que água fedorenta é essa que você põe na xícara, mamãe?”


“Criei um desinfetante para o meu dedo, Edvard.” - ela respondeu. - “Tomara que funcione.”

De semana em semana, como que por um milagre, a unha acabou sendo curada.


Decisão tomada, entrei em contato com Rafaelo, dizendo então que aceitava a proposta, e marcamos de nos encontrar, no mesmo dia, em um galpão abandonado indicado por ele.


Eramos um sem-número de homens e mulheres de valor dispostos a resistirem. Rafaelo me explicou o plano. Tomaríamos o Palácio da República e mataríamos Jupecê Piccolo, por consequência, derrubando o regime. “Devolveremos a democracia à República do Álamo. A vontade popular voltará a ser ouvida e respeitada.” - disse a todos. Não se ouviram protestos em relação ao plano. Todos concordaram, inclusive eu. Quase imediatamente após explicar, Rafaelo bateu os olhos em mim e estranhou o meu olhar inseguro. Acabou percebendo que estava abatido, mesmo com todo meu esforço para disfarçar.


“Que foi que aconteceu, Hespanhol?” - veio até mim sob as atenções de todos. - “Quer nos compartilhar alguma coisa que aconteceu? Ou ainda acontece, não sei. Pode dizer, está entre amigos.”


“Perdi o meu pai.” - disse então - “Foi assassinado.”

Todos arregalaram os olhos para mim e Rafaelo perguntou:

“Como foi isso, Hespanhol?”


“Foi morto pelo regime a mando de Jupecê, eu não tenho dúvida disso. Mamãe estava em casa quando ele foi levado, preso, pelo Secretário de Justiça e por mais outros homens que disseram ser um promotor, um delegado e um defensor público. Tenho certeza de que o torturaram até a morte, até que papai confessasse que conspirava contra o regime. Jupecê não confiava nele.”


Oposto do que eu imaginava, Rafaelo não externou qualquer surpresa quando me ouviu dizer que meu pai fora assassinado. No instante seguinte, voltou a perguntar se eu aceitava o convite de entrar para o grupo. Respondi que sim, que não somente aceitava como me empenharia com o melhor e o mais furioso de mim.


“Uma pergunta: seu pai conspirava contra o regime?”


“Não. Infelizmente! Apesar de nunca ter se conformado com o golpe tanto quanto eu, ele achava, diferentemente de mim, que não valia mais a pena lutar por esse país. Morreu desiludido. Se eu já odiava Jupecê com todo o meu ser, depois de tudo, odeio agora muito mais. Por isso é que estou aqui e não vejo a hora de estar frente a frente com ele. Quero vê-lo sentir um pouco da dor que fez meu pai sofrer.”


FIM

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