Dava dó ver o modo como a coitadinha era tratada
quando eles se ajuntavam. Uns verdadeiros malvados: é isso sim! Mas,
antes que tenham pena de Magricela, é bom que se ressalte que não
eram propriamente cruéis, pelo contrário, tinham bondade no coração
e não a machucavam. Tratavam-na somente como distração, um
passatempo.
A coisa toda começava assim que Magricela via os
meninos brincando na rua de paralelepípedos. A vira-lata não perdia
tempo e corria para junto deles. Latindo e abanando um fiapo de rabo
pendurado no traseirinho ossuda, ela invadia a roda e corria atrás
da bola de futebol que os meninos chutavam de um lado para o outro,
achando graça na situação. A bola, além de gasta, estava sempre
suja de terra.
-Pega a bola, Magricela! - exclamou, um deles,
prometendo logo em seguida. - Se você pegar, eu te dou um naco de
carne.
Lógico que de tão fraquinha a pobre cadelinha
nunca conseguia alcançar a bola. Mesmo se esforçando até faltar o
ar, Magricela, se já não bastasse o fracasso de sempre perder para
os meninos, continuava com fome. Parece que se contentava apenas em
participar das brincadeiras, o que não era verdade. Estimava também
a companhia dos meninos e queria ficar o maior tempo possível junto
deles.
-Está com fome, Magricela? - outro menino
perguntou certa vez que a viu correr atrás da bola.
O sujeitinho desacorçoado fez essa pergunta já
sabendo a resposta.
Depois de muito fazerem a pobrezinha de boba, os
meninos enfim lhe davam, como recompensa, um pedacinho de carne
congelada que mal enchia uma pata. Uma miséria! Magricela mordia o
pedacinho com sua boquinha minúscula, levando-o para o meio do mato,
e ainda tinha que esperar, paciente, a carne descongelar para comer.
Meu Deus, como ela sofria!
Magricela penava muito!
* * * * *
Certo dia os meninos tiveram uma lição. Ao ver
Magricela correndo atrás da bola feito doida, uma gata persa branca,
que não era de brincadeira, invadiu a roda e pôs fim na zoação.
-Isso não tem graça nenhuma. - miou para os
meninos.
A gata se chamava Revanche. Revanche era uma gata
valente. Junto com a coitadinha da Magricela, não saiu do meio da
roda.
-Dá o fora daqui, sua abobada! - reclamou, um dos
meninos, irritado com a ousadia da gata. - Você está atrapalhando a
brincadeira! - exclamou.
Em voz alta, um segundo menino emendou:
-O que será que ela quer?
Os meninos da rua não compreenderam porquê
Revanche estava agindo daquela maneira. Nunca havia feito isso antes.
Ficaram encarando, sem qualquer reação, a gata branca que não se
mexia do lugar.
Magricela, ainda mais surpresa, ora olhava para
Revanche como quem tentava entender os motivos para ela interromper a
brincadeira, ora para os meninos que a essa altura do impasse já
haviam esquecido completamente a roda e a bola.
-Não vai sair? - um terceiro menino perguntou.
Revanche, em resposta, miou baixinho:
-Não... não vou.
Diante da teimosice, os meninos começavam a
perder a paciência.
-Vamos chutar a bola nela. - sugeriu, um deles,
que completou. - Assim ela deixa de ser intrometida e vai embora.
Os outros concordaram, porém a ameaça não
produziu resultado. Revanche permaneceu parada no meio da roda. Foi
então que o menino apanhou a bola e recuou uma certa distância para
chutá-la.
-Vou contar até três para você deixar a gente
em paz. - avisou-a, em tom de ameaça. - Se não sair da roda, vai
tomar um bolaço.
-Não tenho medo. - Revanche miou, destemidamente.
- Ninguém me arranca daqui.
A valente gata persa continuou onde estava e o
menino, assim sendo, não perdeu tempo. Contou até três, porém,
antes mesmo que pusesse o pé na bola, Revanche mostrou ser muito
mais rápida, saltando encima dele.
-Sai de cima de mim! - gritou, pulando que nem
maluco para se livrar da gata.
O menino chutou a bola para cima e rodopiou várias
vezes antes de finalmente conseguir se livrar da gata, que saltou no
chão e saiu correndo para perto de Magricela. Os outros meninos
dispararam no encalço do amigo; não olharam para trás; só
exclamaram:
-Essa gata deve estar com o capeta no couro!
Em seguida, sozinha com Magricela, Revanche
encarou a pobrezinha com enorme incredulidade.
-Você não pode deixar aqueles meninos bobocas te
tratarem assim. - miou, a gata, em tom penoso e de crítica. - Onde
está seu orgulho? - perguntou.
Magricela, envergonhada, nada respondeu. Não
tinha o que responder. Sentindo-se triste, qualquer coisa que
dissesse só aumentaria sua tristeza. Ela abaixou a cabeça, deu-lhe
as costas e foi embora.
Era fácil para uma gata criada bem, de boa
família, falar em orgulho. Revanche tinha ração fresca, banho
morno toda a semana e uma casa quentinha para se proteger do frio.
Não conhecia a dureza de viver nas ruas.
* * * * *
Os meninos voltaram a se reunir, mas jogar bola
definitivamente parecia que não tinha a mesma graça. A rua andava
bastante chata sem Magricela. Mal puseram a bola no chão para o
começo da brincadeira e um dos meninos reclamou sua falta,
perguntando aos amigos:
-Onde será que ela está?
Os meninos se entreolharam, deixando claro não
entenderem sobre quem ele se referia.
Um deles perguntou:
-Quem?
-A Magricela. - o menino respondeu. - Até agora
ela não apareceu para brincar com a gente; justo ela que sempre
aparece e que vive atrás da gente.
-É verdade. - outro menino concordou. - Faz tempo
que eu não a vejo. - afirmou. Depois reiterou a pergunta. - Onde
será que ela está?
Convencidos de que Magricela não podia ficar fora
da brincadeira os meninos então resolveram procurá-la. Havia um
terreno abandonado no fim da rua. Foram direto para lá.
-A gente quer brincar com você! - gritou, um
deles, assim que atravessou a cerca e entrou no terreno. - Magricela,
aparece logo! - emendou.
-A gente te dá um pedaço bem grande de carne! -
outro menino prometeu.
Olharam atentamente ao redor, porém nada
encontraram naquele lugar, senão mato e umas árvores secas
castigadas por uma cerca de arame farpado. A pobre Magricela sempre
aparecia para jogar bola com eles que não entendiam porquê, naquele
momento, estava sendo diferente.
-Será que ela está chateada com a gente? -
perguntou, um menino que segurava a bola.
Ficou sem resposta.
Ansiosos por encontrá-la, continuaram a procura.
Foram para o quarteirão do lado, onde havia um pequeno restaurante.
Magricela muitas vezes, quando não brincava com os meninos, ficava
deitada próximo da porta de entrada, esperando que os clientes lhe
atirassem comida. Novamente não encontraram ao menos um sinal da
presença dela.
Foi somente quando os meninos retornaram para a
rua de paralelepípedos, cansados de tanta procura, é que avistaram
a gata Revanche com um olhar triste, a cabeça abaixada e
praticamente inerte na calçada.
* * * * *
Assim que se aproximaram da gata persa, um dos
meninos perguntou:
-Por que você está triste?
Em resposta, Revanche miou baixinho, um miado
incrivelmente triste que em nada lembrou a valentia de antes.
Lamentando-se, disse:
-É tudo minha culpa. Eu não deveria ter falado
daquele jeito com ela. Não deveria tê-la tratado mal.
Com crescente estranheza e apreensão, os meninos
prontamente a questionaram:
-Do que você está falando?
-O que foi que houve?
-Aconteceu alguma coisa?
-Fala logo o que você sabe!
Revanche levantou a cabeça, sem mostrar qualquer
incômodo com o interrogatório, e olhou para os meninos.
-Não aconteceu nada comigo, eu estou bem. -
tranquilizou-os. Tomando coragem, revelou. - Estou triste porquê ela
foi atropelada.
Ao ouvir a revelação, um dos meninos
imediatamente se apressou em perguntar:
-Quem é que foi atropelada?
-A pobre Magricela! - berrou, a gata, que, após
um miado de agonia, explicou. - Eu mesma vi quando, ao atravessar a
rua, uma bicicleta desalmada acertou a coitadinha em cheio.
A explicação fez-se tão enormemente sem sentido
que os meninos da rua perguntaram quase ao mesmo tempo:
-A nossa Magricela foi atropelada?
-Sim, por uma bicicleta. - miou, Revanche, que
voltou a lamentar. - Pobrezinha da Magricela, pobrezinha!
Para os meninos, ser atropelado por uma bicicleta
não parecia ser algo tão grave assim. O acidente no máximo
resultaria em alguns arranhões e esfoladuras, nada que não pudesse
ser remediado. Não conseguiam ver sentido para a desmedida tristeza
que a gata expressava.
-Onde ela está agora? - um deles perguntou.
Subitamente emudecida, Revanche os encarou com
profunda consternação e logo em seguida voltou a abaixar a cabeça.
Com isso, eles perceberam a gravidade do acidente e que Magricela
havia ido para nunca mais voltar.
Um menino perguntou:
-Tem certeza que ela morreu?
Revanche limitou-se a acenar afirmativamente com a
cabeça.
Os meninos da rua, que só viam graça em jogar
bola na companhia da pobrezinha, abaixaram também a cabeça.
Magricela era a única e melhor amiga que tinham. Com quem mais eles
jogariam bola na rua?
-Ela era tão legal com a gente. - afirmou, um
deles, aos amigos que no mesmo instante concordaram.
* * * * *
Mesmo entristecidos, a vontade de jogar bola foi
tamanha que não demorou um dia sequer e os meninos já estavam
reunidos na rua de novo. Ainda sentiam saudades de Magricela, mas
também adoravam brincar de jogar bola.
Fizeram a roda que sempre faziam e começaram a
chutá-la de um lado para o outro. Chutaram uma vez, duas vezes, três
vezes. No quarto chute tiveram uma agradável surpresa: uma cadelinha
cor de chocolate, tão magra e frágil quanto foi Magricela, parada
num canto da rua, hesitava se aproximar. Um dos meninos, assim que a avistou, chamou a
atenção dos amigos, apontando na direção da cadelinha.
-Como a gente vai chamá-la? - perguntou.
-Angélica. - respondeu, o amigo.
-Não. - antes que chutasse a bola, um menino
rapidamente discordou. E sugeriu. - O nome dela pode ser Belinha.
-Não vai ser Angélica, nem Belinha. - divergiu,
outro menino. - Que tal Magricela? - propôs.
Os amigos o encararam com certo estranhamento.
Haviam perdido a amiga Magricela no acidente com a bicicleta.
Imaginaram que só podia ter ficado louco em sugerir o nome da finada
cadelinha.
Na dúvida, um deles perguntou de volta, só para
confirmar se ouvira corretamente:
-Você disse Magricela?
-Sim. - ele confirmou. Sem compreender o porquê
do estranhamento com o nome sugerido, justificou-se. - Ela se parece
com a outra Magricela e pode ser a nossa nova amiga tranquilamente. O
nome é uma homenagem.
Os meninos da rua se entreolharam, pensativos, mas
não demoraram em aprovar a ideia de homenagear a amiga atropelada e
não mais se ouviu qualquer objeção ao nome.
-Eu concordo. - disse, um deles.
-Eu também. - emendou, o outro.
-Também concordo. - um terceiro complementou. E
concluiu. - Magricela certamente é um bom nome.
De fato, ambas as cadelinhas guardavam curiosas
semelhanças. Tinham a mesma magreza, embora a magreza da primeira
Magricela fosse um pouco mais ossuda, e tinham até a mesma cor,
embora a original fosse um pouco mais escurinha. Eram incrivelmente
semelhantes no olhar abandonado e no jeito perdido com que caminhavam.
Imediatamente após a escolha do nome, os meninos
da rua voltaram a brincar. Já não mais pareciam ser tão malvados
na zoação. Eles chamaram Magricela que, jubilosa, entrou no meio da
roda e começou a correr atrás da bola.
-Pega a bola, Magricela! - incentivavam, os
meninos.
A rua de paralelepípedos foi se enchendo de
alegria ao tempo em que as duas, bola e Magricela, corriam de um lado
para o outro, e corriam sem descanso.
FIM

Nossa! Muito emocionante o conto. Leitura divertida e a gente só consegue parar de ler quando termina. Lembrei de quando eu, uma amiga e minha prima tínhamos um cachorrinho vira-lata que se chamava Bob. E o Bob era um cãozinho incrível e a gente fazia festa pra ele. Meninos brincam de bola, meninas brincam de festinha. kkkk Você é um escritor maravilhoso! Consegui imaginar cada detalhe como uma cena de filme. Mexe com nossas emoções.
ResponderExcluirEliziane, percebeu que estamos nos tornando melhores amigos? kkk
ExcluirSeus comentários são um bálsamo p/ o meu dia. Volte sempre!
Minhas emoções também são mexidas quando escrevo histórias como essa. Talves por isso é que são tão sensíveis?!
Poxa vida, que destino triste da pobre gatinha Magricela!
ResponderExcluirEssa história já existe, ou você quem a criou??
Muito bom! rs
Oi, Vanessa, foi eu quem criou a história sim. Tudo que post no blog é de minha autoria.
ExcluirUMA CORREÇÃO: Magricela não é uma gatinha, é uma cadelinha vira-lata.
Abraço.
Não posso dizer que este seja o meu tipo de leitura preferido, sou dada a explosões literárias do tipo que possam tirar o fôlego, ou pelo menos deixar-nos boquiabertos, contudo, a história é bonita e foi muito bem escrita, posso te dar os parabéns sem qualquer hipocrisia.Então, parabéns!
ResponderExcluirObrigado por tudo, Adrina, volte sempre!
ExcluirEstava tudo bem até o trágico fim da Magricela, eu acabei me lembrando de uma cachorinha que eu tinha que se chamava Belinha, sim Belinha, a Belinha amava correr atrás da bolinha de silicone que ela tinha, até que no reveillon ela fugiu e no dia seguinte foi atropelada...
ResponderExcluirMuito emocionante a sua história!!
Obrigado, Bruna.
ExcluirQuem não tem alguma história com algum animal de estimação, não é mesmo? rs
Volte sempre!
Muito triste.. Não esperava que a cadelinha morresse :( É mesmo verdade?
ResponderExcluirNão pode mexer com o coração de uma apaixonada por animais dessa maneira. Fiquei mesmo triste porque não é só uma história. Há tantos animaizinhos a sofrer por aí e tanta gente má que não é capaz de os respeitar.
Apesar disso, mais uma vez, gostei muito do seu conto! Impossível não gostar, não é? :)
Pseudo Psicologia Barata
Bia, também sou defensor dos direitos dos animais.
ExcluirEste conto é uma obra ficcional que aborda duas coisas reais, a fome e exclusão.
Obrigado pela visita.