Então
foi assim que o diabo da coisa se deu: o urso começou a falar. As
palavras soaram um tanto quanto desconexas, quase sem sentido, como
quem havia aprendido a falar do nada. Aos poucos, o urso de nome Urso
passou a imitar o Homem.
Antes
que o diabo da coisa se desse, Urso estava recolhido em sua toca e
sequer pensava sobre sua condição de animal, até mesmo por que
ursos não raciocinam, não têm a virtude de ser gente. As primeiras
palavras que ensaiou foram um vai, embora e daqui em advertência a
uma cobra que havia entrado em sua toca enquanto ele dormia. A cobra,
fingindo não tê-lo ouvido, foi embora.
Mas
como é mesmo que o diabo da coisa se deu? Urso nunca falou. Ao certo
e no máximo, Urso somente rugiu como todos os outros. Urso saiu da
toca e foi passear na floresta sem que pudesse refletir sobre o que
lhe aconteceu. E é correto supor que não sabia em que lhe poderia
ser útil a fala. Como disse, o diabo da coisa nunca se dera antes.
Um
rio corria com alvoroço há pouco mais de um quilômetro de
distância de onde o urso passeava. Urso caminhou até o rio. Estava
faminto. Pelo caminho, se deparou com uma águia pousada na corcova
de uma rocha e a águia o encarou com superioridade e indiferença.
Já haviam se encontrado minutos antes e em outras vezes, mas para o
urso tratava-se da primeira. Mal sabia, a águia, que ele falava.
Invés de rugir para a águia, furioso, Urso repetiu as três
primeiras palavras que havia dito à cobra, na toca. A águia, mais
horrorizada do que qualquer coisa por descobrir que um urso podia
falar, levantou voo e desapareceu sobre as árvores. No que chegou no
leito do rio, Urso se atirou na água congelante contra os cardumes
de salmões que avistava, saciou a fome e voltou para a toca para se
proteger do frio. Começaria um inverno sem precedentes para o diabo
do Urso. A neve que caía toca afora era torrencial. Urso só deixava
a toca quando o frio aliviava um pouquinho para caçar salmão, mas
logo voltava. Passou o inverno rigorosamente assim.
No
primeiro dia da primavera, o diabo da coisa se repetiu: o urso,
dotado de razão, começou a pensar. Raciocinava perfeitamente bem,
um raciocínio lógico, minimamente sofisticado, exato. Sentiu uma
vontade doida de contar tudo que via pela frente aos outros ursos que
encontrasse na floresta, mas não demorou a perceber que tal vontade
era extremamente estúpida. Os ursos não o compreenderiam, capaz até
que fugissem como a águia, espantados ao ver que um urso não apenas
podia falar como pensar. Antes de sair da toca, Urso avistou a mesma
cobra que havia visto quando descobriu pela primeira vez que podia
falar e, inteligente, dirigiu-se à cobra com polidez. Perguntou o
que ela fazia em sua toca e se também podia falar. A cobra, porém,
nada respondeu. Rastejou para fora até desaparecer na vegetação.
Com
fome, o urso foi até o rio ver se encontrava comida e, no caminho,
pôs-se a refletir sobre como havia chegado na condição de urso
falante e pensante. Lembrou da cobra e ligou uma coisa com a outra.
Talvez a cobra fosse a responsável pelos feitos. Mas como é que o
diabo de uma cobra faria um urso falar e pensar? Impossível. Urso
cogitou em seguida que estivesse vivendo em uma realidade paralela,
em um tempo circunscrito à sua imaginação, e riu de si mesmo nesse
momento. - Que imaginação, que nada! - era verdade, real.
No
que se deparou com o rio, Urso, com ainda mais fome, se não bastasse
o conflito com sua nova condição, não caçou os salmões dos quais
se alimentava pois seu paladar também havia mudado. - Odeio peixe
crú. - então, logo pensou em fazer uma fogueira para assá-los,
assim resolveria o conflito genialmente. Mas como conseguiria fazer
uma fogueira com patas tão curtas e a fome era grande demais para
esperar por tanto trabalho. Desistiu do rio e se embrenhou na
floresta em busca de frutas. Começando a detestar a ideia de falar e
pensar, azarado, não encontrara fruta alguma para comer. Urso voltou
para a toca de estômago vazio.
Por
dias, o urso não encontrou comida que fosse conveniente. Não
gostava mais de comida de ursos, queria comida de gente. Acabou
ficando doente e fraco, e não tinha força, nem disposição, para
sair da toca. Contudo, magro e debilitado, o urso teve quem o
ajudasse a se recuperar. A cobra entrou na toca trazendo consigo, em
suas presas, uma suculenta maçã verde. Colocou a maçã próxima do
focinho do urso que a comeu com uma só mordida. Ela repetiu o gesto
inúmeras e incansáveis vezes. Ora ofereceu maçãs, ora laranjas,
ora mamões, ora outras frutas, até que o urso foi se recuperando da
fraqueza e saciou a fome.
E
não foi apenas a fome a única necessidade do urso. Recuperado, Urso
estava carente. Queria que a cobra lhe fizesse companhia e assim ela
o fez pelo transcorrer da primavera.
Com
a chegada do verão, enquanto Urso dormia, a cobra mordeu Urso pela
terceira vez e rastejou para fora da toca, desaparecendo na
vegetação. O diabo da coisa se repetiu. Além de falar e pensar,
Urso transformara-se fisicamente em homem. Tão logo abriu os olhos,
percebeu que uma coisa muito séria havia acontecido. Estava mais
leve e percebeu-se em um corpo mais alongado. Estranhando que havia
se levantado facilmente como jamais se levantara, olhou então para
baixo e viu o corpo masculino. Urso, que falava e pensava como homem,
agora tinha também o corpo de um.
Imediatamente
depois que se colocou em pé, andou até a saída da toca, lugar de
onde ficou surpreendentemente apavorado ao olhar para fora e ver a
floresta. Levaria um tempo até que se acostumasse que não era mais
um urso. Voltou para dentro da toca e concluiu que permanecesse
escondido nela ficaria a salvo. Percebeu rápido que sua nova
condição, na verdade, representava-lhe uma gigantesca dificuldade
que se abatera sobre sua vida e desejou mais rápido ainda que
voltasse a ser o urso de sempre, não importando se não falava ou
pensava.
Um
pouco mais tarde, Urso se perguntou para onde havia ido o diabo da
cobra que o salvara da fome na primavera e chegou a conclusão,
juntado um fato ao outro, que só poderia ter sido ela a responsável
por sua infeliz transformação. Nunca voltariam a se reencontrar.
Dia após dia, faminto, fraco, escondido, o Urso antes e depois do
Homem foi fechando os olhos, a toca ficando cada vez mais escura, até
que o fim, finado, chegou enfim.
FIM.

Cara, gostei bastante da sua narrativa, novamente. Peguei alguma intertextualidade com o mito de Adão, existe ou nada?
ResponderExcluirAbraço.
Com o mito de Adão? Diria que muito pouco. O personagem Urso do conto é muito mais uma metáfora do Homem em sua jornada. Mas claro que também tem muito mais ficção e imaginação do que qualquer filosofia em si, rs.
ExcluirRespondi? Abraço.
Uau, gostei muito! Não sei se estou a racionalizar demasiado mas não será uma espécie de metáfora para o homem que pensa demais acerca da sua condição? Acredito que quanto mais pensamos sobre aquilo que somos, sobre a condição humana, enquanto conjunto também, de verdade, nos tornamos seres mais evoluídos, mais conscientes, mas passamos a carregar um fardo cada vez maior. Cheguei ao ponto que queria chegar? Ou é apenas uma interpretação pessoal?
ResponderExcluirPseudo Psicologia Barata
Bia, você fez uma interpretação muito comum e que eu próprio faço desse conto. Acertou na mosca, rs. Embora o conto também seja uma ficção, uma alegoria da jornada humana.
ExcluirAjudei?
Olá, Roberto.
ResponderExcluirQue conto bem escrito! Achei profundo, me deixou logo nos primeiros parágrafos muito curioso e aos poucos as respostas foram surgindo. Adorei sua escrita.
Até mais. http://realidadecaotica.blogspot.com.br/
Renato, obrigado pelos elogios ao conto. Demorei semanas p/ escrevê-lo.
ExcluirQue bom que esse tempo valeu a pensa, rs!
Olha... Fiquei um pouco confuso. Tinha horas que parecia que usava Darwin como inspiração e em outras a Bíblia. Mas a narrativa em si é boa, só não consegui realmente contextualizar.
ResponderExcluirFranklin, meu amigo, meus contos não são p/ principiantes, kkk - Brincadeira!
ExcluirNão entendeu. Tente relê-lo, quem sabe c/ uma segunda leitura não o perceba de um jeito diferente.
Volte sempre!
Cara que contou em , gostei , achei profundo , me deixou curiosa até ,não é sempre que alguém me deixa presa em conto '-' está de parabéns imagino que demorou dias pra escrever esse conto kkkkkk ...
ResponderExcluirbjs
http://jesscastrojc.blogspot.com.br/
Oi, Jéssica, na verdade demorei bastante para escrever sim: mais de uma semana, fora as revisões, rs.
ExcluirObrigado pelo generoso comentário.
Volte sempre a este humilde blog, rs!
Oi Rob,
ResponderExcluirMais uma vez seu conto está muito bem escrito, no qual os leitores precisam ler as entrelinhas, racionalizar as palavras e buscar as metáforas escondidas. Acho que conseguir captar o que você desejou é bem difícil, mas senti a necessidade de buscar aquele olhar que o homem faz de si mesmo ou deixa de fazer. Muito bom!
Beijos!
Obrigado, Alice, minha tarefa foi cumprida então. Te agradei.
ExcluirAbraço e retorne mais vezes.
Parabens, sua escrita e fascinante. consegui compreender a metafora nesta ficcao que prende o leitor apois a primeira frase, tsc. a maneira que coloca as respostar aos poucos faz com que o leitor prossiga com a leitura ainda mais cuidadosa, a jornada de um homem e sempre fascinante
ResponderExcluirObrigado, Oculto, é seu primeiro comentário, não?
ExcluirFez uma boa estréia! Gosto muito desse conto também.
Abraço.
Oi Rob, adoro autores que nos botam para pensar, aqueles que entregam tudo de mão beijada,não marcam, são esquecidos, esse seu texto ficou muito legal, e eu entendi como sendo um paralelo a condição do homem, que quanto mais ele consegue, mais ele precisa, mais exigente ele fica, em qualquer esfera da vida...Muito bom...Parabéns!
ResponderExcluirwww.livrosemretalhos.com.br
Obrigado, Gilvana, volte sempre!
ExcluirMuito generoso teu comentário. Abraço forte.
ótimo conto querido e muito bem escrito como todos os outros. Meus parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado, Adriana, palavras generosas mas muito verdadeiras vindas de você.
ExcluirAbraço.