O
dia
era
cinco
de
março,
de
uma
manhã
de sexta. Em
torno de
vinte
a trinta militares pelegos de um tempo de ditadura,
a maioria deles
reformados
que, quando podiam, se prestavam ao papel
de lamber as bolas do Presidente
da
República,
um sujeito que sempre odiei, se
reuniram em casa pela
terceira vez naquela semana.
Ao
contrário de mim, que só
com muito esforço consegui
mostrar o mínimo de receptividade e polidez, papai
os recebeu
de braços abertos. Nunca
me simpatizei com eles e posso apostar que o contrário também foi
recíproco. Nunca
disseram mas sei que foi.
-Entrem,
filhos
de uma égua parida!
- disse,
papai. - Mais
um minuto e pensaria que
não viriam mais! Por que demoraram? - perguntou.
Um
deles respondeu por todos:
-Deus
do Céu,
Áries,
a
gente nem chega direito e já
está reclamando! Não seja
tão rabugento!
É
assim que recebe a gente, é?
Pelo
nosso cansaço, agradeça
ajoelhado por
ainda
termos
vindo.
Haviam
varado a noite naquelas
casas
de
zona fodendo umas putas pretas vindas
do
nordeste
do Brasil.
Frequentavam
a
casa
desde as
folgas do
tempo de quartel, na
juventude,
mas
papai
há muito que não os
acompanhava;
mais
precisamente, abandonou
a diversão
há
vinte e dois anos, no
dia seguinte que conheceu mamãe,
com
quem se casou
um
mês depois, oito meses antes de eu nascer.
Mamãe trabalhava
como garçonete há
pouco
tempo, porém, o suficiente para que
conhecesse
bem
os
dois
tipos
de homens
que frequentavam
a
casa:
os
pervertidos e os
que não sabiam foder e
amar ao mesmo tempo.
- Está
gostando
de
olhar as
meninas, garanhão? - na
mesma hora em que foi pedida em casamento, advertiu papai
sobre a casa.
- Aproveite
bem essa
noite porque,
a partir de hoje, nunca
mais colocará os pés aqui.
Sou
ciumenta e, portanto, não costumo dividir quem amo com nenhuma puta.
Que
é meu, é meu! Jura
que se conforma
com isso ou
não me caso com você? - mamãe
falou
sério e fez questão de deixar transparecer isso. - Claro
que juro, meu
amor. Nunca
mais venho
aqui. - papai prometeu.
Ouvi
dele
certo
dia
que,
mesmo com as inúmeras
insistências
dos
amigos
em
convidá-lo para que fosse, nunca mais esteve no
lugar,
conforme prometera.
- Homem que é homem gosta de uma
só
mulher:
a
que
seja forte, a
que
tenha personalidade,
a
que
seja feminina, a fêmea.
Sua
mãe é maravilhosa, Edvard.
Torço muito
para
que consiga arrumar uma esposa tão boa quanto a minha. -
definitivamente,
papai
tinha
uma visão pessimista sobre mim
em
pensar que nenhuma
outra
mulher
da República do Álamo não
seria
tão maravilhosa
para
mim quanto
era mamãe
para
ele,
embora fosse mesmo perfeita
e
insuperável.
Ou
talvez desconfiasse até que não levava jeito para
o negócio.
Nunca
imaginei que fosse esse o caso.
Enfim,
mamãe era mesmo maravilhosa.
Os
Hespanhol na
República do Álamo resumiam-se
aos
dedos de uma mão, exatamente
cinco,
e olha
que em
casa eramos três: eu, mamãe
e papai.
O quarto Hespanhol era um primo que
havia desaparecido
na visão dos meus pais,
mas que,
para mim, fora
assassinado
por
aliados
de
Markoon, conhecidamente, seu desafeto.
Ativista político, criticava a
corrupção
de seu governo. O quinto Hespanhol era sua
mãe,
uma tia na qual não nos relacionávamos. Mamãe, por algum motivo
que nunca conheci, havia brigado e se afastado da irmã,
assegurando-se
que eu e papai
fizéssemos o mesmo e também nos afastássemos dela. - Você
já sabe mas eu vou repetir, Edvard: se ver aquela Solange rodeando o
prédio de novo, pode fechar a cara e dizer que mamãe não está em
casa. - orientou, nervosa, em uma determinada tarde em que me viu me
arrumando para sair. Exatamente assim, obedeci
a
orientação ao
vê-la se
aproximar e tia Solange foi embora. Havia sido a última vez em que a
vi.
Tempos
depois, mamãe ouviu rumores pela
boca de uma conhecida que
tia Solange se mudara para a cidade de São Paulo e
que havia se casado com um homem muito rico.
- Sorte, foi a dela que
ficou rica e
a nossa que
vamos ter paz.
- comemorou.
Festas
eram
algo que se via com
frequência em
casa: aniversários,
páscoas,
natais,
conquistas
do campeonato nacional
de
futebol pelo Sport Republicano e
outras
que
não me lembro,
até
as sem motivo. Nunca
faltaram
razões
para que nos reuníssemos e comemorássemos,
mesmo que a três, portanto,
o
aniversário
de papai, cujos
amigos de quartel haviam sido convidados, seria
mais uma ocasião comum, sem
anúncio
de
nada em
especial, mas
não foi. Eu
assistia televisão no
quarto
quando
mamãe
se aproximou e, com um rápido olhar, pediu que eu me juntasse a eles
na
sala, pois
chegara o momento de cortar o bolo e de
dar
os parabéns ao aniversariante;
aliás,
bolo,
esse, que, colocado no
centro
da mesa, era a única coisa que acusava que aquele jantar masculino
era, na verdade, uma comemoração de aniversário. Comi logo
o
meu pedaço e voltei para cama,
para frente
da
televisão, deixando-os a
vontade
para falarem de
política.
Sempre
que se reuniam, eles
arrumavam
um jeito de criticar a falta de autoridade dos políticos que sempre
eram eleitos na República do Álamo. - O nosso povo não sabe votar
e, quando vê que alguém é firme e merece ser votado, acha que não
é bonzinho o suficiente. O nosso povo é burro, demagogo, não tem
caráter. - papai sentenciou tendo a concordância explícita dos
amigos. Era
como se adivinhasse o quanto aquela manhã seria enganosamente
aborrecida.
Não muito depois que deitei
na cama e recoloquei os olhos na televisão,
o
plantão jornalístico interrompeu o filme que
estava assistindo para
uma notícia de última hora que
parecia
de
crucial importância: a República do Álamo sofria um golpe de
estado e o presidente Markoon
era
forçado a renunciar, exilando-se no
vizinho estado da Paraíba,
no
Brasil.
Jupecê
Piccolo: esse era o nome do golpista.
Deputado
italiano
na
década de setenta,
era o cabeça de
uma
organização beneficente alimentada
com
dinheiro público. Fora
denunciado por associação criminosa e enriquecimento ilícito,
porém,
antes
da
condenação,
fugiu
para o Brasil e
logo
casou
em
Sergipe com Ana Cristina, prefeita de uma cidade do interior,
recomeçando a vida e,
assim
como na Itália,
ascendendo
na
política com relativo sucesso. Elegeu-se
deputado
estadual
em
três
mandatos e depois
foi
suplente
de
senador, período
em que os
negócios transcorreram
perfeitamente,
até
que
viu-se
novamente
às
portas
da justiça
ao
ser apontado
como
mandante do assassinato de
Octávio
Jardim,
senador
na
qual era suplente. E,
quando
ia ser condenado de novo,
voltou
a fugir,
só
que, dessa
vez,
para
a República do Álamo.
Desde
então, vivia com o status de perseguido político na
capital
da república,
que,
em
troca desse status,
tinha
que lidar
com o descontentamento crescente
de
um
Brasil que
ainda
se
ressentia com a nossa
declaração
de
independência, quando
o antigo Estado de Pernambuco se autorreconheceu
República do Álamo, quando
nos autodeterminamos uma
nação independente. Quase
fomos à guerra, no
entanto, com a mediação diplomática dos Estados Unidos, Canadá,
Argentina e Índia, aliados tanto do Brasil como nossos,
a crise, aos poucos, foi sendo amenizada.
Mas isso é o
que menos importa agora, e não está
em questão.
Hábil e perigoso, traindo aquele que pensava ter como aliado, Jupecê
Piccolo, através
de uma revolução de cem mil homens seduzidos
por seus ideais de justiça e igualdade,
invadiu o Palácio da República, sede do governo, e
obrigou
Markoon
a assinar
a própria renúncia, tomando
o poder. Não
que eu gostasse do presidente, pois
eram
raros
aqueles que verdadeiramente gostavam, assim
como papai, achava-o
fraco demais. De
repente, éramos sortudos e não sabíamos. Comparado
a Markoon,
Jupecê
se revelaria
o
líder
repressor
de um estado
autoritário,
conservador
e nacionalista.
Enquanto
papai
dava
a entender
não
tomar conhecimento do golpe de estado, mamãe
sentiu os
seus efeitos logo na
primeira
segunda-feira.
Foi
abordada por três policiais, informantes
diretos
da presidência,
ao ir à
feira comprar legumes e temperos para
o
acompanhamento de um assado que prepararia no jantar. Começaram a
interrogá-la ali mesmo, às vistas dos feirantes e clientes que
circulavam entre as barracas.
-A
senhora é esposa de Áries Hespanhol?
-Sim,
sou esposa de Áries Hespanhol. Me
chamo Beatriz. Por
que?
-A
senhora saberá no momento devido o porquê da nossa pergunta. Agora,
por favor, tenha a bondade de nos acompanhar até o
Departamento de Polícia.
-Agora,
mas
por qual
motivo?
-Sim,
deve nos acompanhar agora mesmo. O porquê a senhora saberá no
momento certo, já disse.
Diante
de
tal
persuasão,
mamãe concordou em acompanhá-los então, porém, antes de entrar na
viatura, perguntou educadamente:
-Posso
ligar para casa para avisar a minha família aonde eu estou indo? Meu
filho e meu esposo vão ficar muito preocupados se eu não chegar em
casa antes do jantar.
Um
dos policiais respondeu com certa rispidez:
-Dona,
por favor, facilita o nosso trabalho. A senhora pode pedir que quiser
ao Secretário de Justiça. A senhora é um problema dele, e
não
nosso.
Desse
modo, prontamente convencida de que não conseguiria qualquer acordo
com os policiais, mamãe os acompanhou, entrando na viatura. Ao
chegarem no departamento de polícia, foi levada até uma
sala no
último andar do prédio,
onde a esperava o Secretário de Justiça nomeado por Jupecê. Fui
saber, dias
mais
tarde, por
ela própria, que
mamãe fora interrogada pessoalmente pelo secretário, que, a todo
custo, queria saber tudo
que pudesse a
respeito do
papai. Perguntou
sobre
onde ele estava, com quem estava e que fazia precisamente no momento
em que o novo governo havia
se instalado.
Soube que, de todas as suas respostas, em quase todas havia mentido
com
destreza.
De verdadeiro, mamãe assegurou ao secretário que papai comemorava
seu aniversário e que tinha como provar isso pela data de
nascimento, mas,
de
mentira,
disse
que
fora apenas um jantar em família e
mais
três amigos mais próximos. O Secretário de Justiça acreditou.
Mamãe sempre conseguiu
ser confiável.
No
tempo em que,
aos poucos, a
realidade
se
implodia, a
afeição
que desenvolvi pelos
universos
imaginados,
impressos nas páginas dos
livros, sempre
foi
maior do que tudo mais que me cercou;
e não por menos é
que
estudava
para ser bibliotecário,
estagiando
como
repositor na
biblioteca
da universidade,
prensado entre
estantes
abarrotadas
deles.
Tinha
acesso às
obras clássicas, aos livros icônicos de escritores miseravelmente
fracassados em vida e às
obras acadêmicas
e exatas. Semanas
antes que
me defrontasse com meu
infortúnio, não sei bem qual fora exatamente
o dia, se quarta ou se
quinta,
estava,
eu, na
biblioteca,
meio que buscando me distrair de uma chateação que se definia pelo
nome Silverclay, um
melhor amigo com quem mantinha
um caso.
Frequentávamos
a mesma universidade, contudo, depois
de discutirmos pelo motivo de que ele não concordava com o segredo
do nosso caso, Silverclay
e eu havíamos
terminado.
De uma hora para outra, passou a achar que o motivo para eu
não querer assumi-lo
ia muito além do que aquele
que eu
alegava,
que, na
verdade,
não era por eu temer o preconceito e as dificuldades que sofreríamos
ao nos revelarmos namorados,
mas sim que o
motivo real
tinha
a ver estritamente com ele.
Embora no calor da discussão, disse com todas as letras que
eu não o
assumia porque
ele era negro, ou
seja, que
eu
era o tipo mais covarde de racista que
se podia existir:
aquele
que discrimina mesmo amando o
discriminado.
Um
despropósito e um completo absurdo que pensasse assim de
mim. Éramos
amigos desde meninos e morávamos no mesmo quarteirão; quase não
nos
afastávamos um
do outro. Nunca consegui entender como ele havia se esquecido das
incontáveis ocasiões
em que fomos
felizes
juntos; boa
parte desses momentos
em
público, sob o olhar de outras pessoas. Na
época de escola, íamos a
um
circo que
não passava dois anos sem visitar a capital,
como
uma desculpa mal disfarçada para ficarmos juntos.
Nas
férias, jovens,
zoávamos
nas
praias
com altas noitadas, acompanhados por amigos de
classe e
xícaras
de café cheias de cachaça.
Uma
simples discussão desentendida
e Silverclay
se
esqueceu
de tudo,
inclusive,
dos
momentos que
a
pessoa mais desatenta
não
esqueceria:
das
farras, dos
sanduíches
e
das horas
ensolaradas
trancados num quarto assistindo
filmes pornô.
Nunca
se conheceria outra
pessoa no
mundo capaz
de esquecer o
que
é bom, mas
eu sim: Silverclay.
Foi
então que, quarta
ou quinta,
na
biblioteca, tivemos
a primeira
oportunidade
de nos reencontrar após
o
término.
Me disse
que procurava um livro para um trabalho de pesquisa de
curso,
no
entanto, percebi
logo que
isso não passava de pretexto
para que nos reencontrássemos e, então,
pudéssemos finalmente
esclarecer o mal entendido. Ainda
me amava; eu
também amava ele.
Ao
caminharmos até um canto mais afastado, nos beijamos, pedi
desculpa, o mesmo acontecendo por parte dele,
e reatamos
o
caso,
embora
já
tardia
a promessa
que
fiz
de
enfrentar o
mundo, caso
necessário fosse,
pelo
nosso amor.
Quis
o destino que nos separássemos de uma vez por todas.
Silverclay,
ao voltar para o estacionamento naquele
dia,
abriu a porta do carro e foi abordado por um rapaz que anunciou o
assalto. Percebeu
que havia deixado cair a carteira que jurava ter enfiado
no bolso da calça.
Desgraçadamente,
podemos
ter as reações mais estúpidas quando
nos vemos surpreendidos e
não sabemos
o
que
fazer.
Com
Silverclay,
não
se deu diferentemente,
viu-se
tomado pelo nervosismo e pôs-se a correr, não conseguindo
fugir
do rapaz. Recebeu três
tiros
pelas
costas; um deles atravessando
o coração como faca
quente em um pedaço de manteiga.
Quase
não
chorei
por
sua
morte ou
guardei
devidamente o luto. Faltou-me
tempo e tranquilidade. Circunstâncias
piores se sucederam na República
do
Álamo.
Silverclay
foi sepultado ao lado de seus
pais adotivos, mortos há
três
anos em um acidente de carro, pois
esse era o seu desejo; eu e nossos amigos em comum providenciamos da
coroa de rosas brancas ao caixão de mogno para
realizá-lo
como merecia.
Nesse
meio tempo, enquanto o caixão era colocado na sepultura, papai era
interrogado pessoalmente pelo Secretário de Justiça, assim como
mamãe havia sido. Quem soubesse de tal coincidência, ou não,
pensaria, ou
não,
que se
tratava de
uma família muito importante e influente,
daquelas
poucas que pilham
e concentram riquezas
em países socialmente injustos,
mas não era bem por questão de importância ou influência que o
regime se preocupava tanto conosco. O secretário queria se assegurar
de que não representássemos uma ameaça ao
estado,
seja qual fosse
e
por menor que viesse a ser.
Mesmo sendo, ele, homem de confiança de Markoon, papai tinha a esperança de que, após liderar o golpe, Jupecê o esqueceria, ignorando a conhecida amizade de papai com o presidente renunciado. Mas não foi o que aconteceu porque Jupecê Piccolo era habilmente detalhista e estratégico na busca de seus objetivos. Certificando-se de que papai não atentaria contra e nem trabalharia pela desestabilização do regime, e como quem perguntava por perguntar, o secretário quis saber onde ele estava na manhã em que o presidente renunciara e teve a mesma resposta que mamãe havia lhe dado na vez em que fora interrogada. Papai respondeu que comemorava seu aniversário com um jantar em família e alguns amigos próximos, omitindo que seus colegas de quartel estavam presentes no almoço.
Mesmo sendo, ele, homem de confiança de Markoon, papai tinha a esperança de que, após liderar o golpe, Jupecê o esqueceria, ignorando a conhecida amizade de papai com o presidente renunciado. Mas não foi o que aconteceu porque Jupecê Piccolo era habilmente detalhista e estratégico na busca de seus objetivos. Certificando-se de que papai não atentaria contra e nem trabalharia pela desestabilização do regime, e como quem perguntava por perguntar, o secretário quis saber onde ele estava na manhã em que o presidente renunciara e teve a mesma resposta que mamãe havia lhe dado na vez em que fora interrogada. Papai respondeu que comemorava seu aniversário com um jantar em família e alguns amigos próximos, omitindo que seus colegas de quartel estavam presentes no almoço.
-Eu
fiz alguma coisa de errado,
senhor secretário?
-Não,
senhor Áries. Não.
-Tem
certeza?
-Sim.
Mais
tarde é que fui
descobrir o motivo da
omissão de papai.
Ele
sabia que os amigos tramavam alguma coisa contra o regime, embora
ainda não soubesse exatamente o
que.
Desconfiado
de
papai,
o Secretário de Justiça repetiu sua
pergunta e papai reiterou
sua
resposta.
Como
quem busca
desbaratar
em
uma
armadilha mental
a pior mentira dos
mentirosos,
indagando-o
em
um
tom de
voz um
tanto quanto informal, quis
saber que
papai
achava
da figura de Jupecê, se
o achava confiável, digno
de consideração.
Papai, por sua vez,
esperto,
em um tom tranquilo de
voz,
a
fim de transmitir
muito mais credibilidade, respondeu
que
não o conhecia pessoalmente, que só o lembrava
de nome e
pela
imprensa,
e que, portanto, não guardava
condições
de emitir qualquer juízo em relação a
pessoa,
mas
que, no geral, o achava respeitoso e respeitável.
Para
reforçar tal credibilidade, papai emendou que, se tivesse
oportunidade, ficaria
feliz e honrado em conhecê-lo. Posicionado
na mesa, havia em
sua frente uma
foto de Jupecê, cercado
pelo povo, que
papai,
vez
ou outra, olhava
com admiração. O
secretário revelou-lhe então que teria essa oportunidade e que
seria bem antes que imaginasse.
-Pois
bem, meu caro Áries, estamos
satisfeitos com suas informações. Jupecê
Piccolo mandou informá-lo que deseja se encontrar com o senhor para
tratarem de assuntos de política. É
realmente um homem bastante agradável! O
senhor aceita o convite?
-Obrigado,
senhor secretário. Aceito com muita honra.
-Ótimo
então, entraremos em contato quando isso for possível.
-Obrigado,
senhor secretário. - e papai, em seguida, se retirou da sala.
Obviamente
que aceitou demonstrando um falso
entusiasmo
diante de tal possibilidade.
O encontro não tardaria a ocorrer.
A
partir
do momento em
que
soube,
pela
boca de mamãe,
que papai havia sido interrogado pessoalmente pelo secretário,
interrogatório,
evidentemente,
sem quaisquer
motivos
que os
justificasse,
a repulsa que sentia pelo regime começou
a crescer em meu íntimo de um modo lento, gradual e sem controle.
Era como se um câncer, se desdobrando em metástases por todos os
meus pensamentos, consumisse-me a paz e o
bom juízo.
Se
não parava, Jupecê
Piccolo tinha que ser parado. Atravessaria
dias e horas na
biblioteca pensando
em um modo de matá-lo.
Meu plano, inicialmente, foi
sequestrá-lo
para, depois, assassiná-lo,
porém, ao
passar
um dia inteiro planejando
e maquinando ideias,
me convenci de que nada disso reunia
qualquer possibilidade
de
ser bem-sucedido. Seria
um só contra muitos de um governo inteiro. Posteriormente,
cogitei fazer
com que o
carro oficial que
o transportava
se acidentasse na
estrada que dava para o Palácio da República. Uma
emboscada através
de
uma
armadilha não me
pareceu
má ideia; envenenamento
talvez;
explodir-me
em
um
atentado a bomba, em
um carro-bomba; fui
enfim mais pragmático e objetivo do que supunha.
- Vou
entrar
para uma fraternidade
anarquista, um
grupo rebelde,
me tornar
um
revolucionário. - estava
decidido. Seja
lá de que forma se
desse o ataque, em que hora do dia se fizesse a revolução, era
o certo, o
justo, a
minha
única obrigação. - Pode
deixar, pai, que eu
mato o
filho da puta.
Encontrar
aqueles que partilhavam da
mesma
decisão
que a
minha
foi
fácil, o
difícil seria nos
convencer,
um
por um,
de que o
nosso
objetivo nunca
seria
alcançado e
que tínhamos logo que cair na real.
Sequer
precisei procurá-los pois
vieram
ao meu encontro quando
menos esperava,
misturados ao povo na praça.
Dezessete
de abril, noite de sábado, soube
que haveria um comício para
anunciar
as recentes e mentirosas
benfeitorias
do regime, com a ilustre presença de
Jupecê Piccolo,
em
uma
praça próxima ao prédio
em
que
morava,
e decidi
que
estaria
presente a
todo custo.
Cheguei
na praça a tempo de vê-lo subir no
palanque, erguido da noite para
o dia pelos
serventes do palácio,
e iniciar o discurso. Jupecê
era daqueles líderes cuja liderança aparentava ser natural, quase
inerente
à própria existência.
Cativava, tinha carisma, simpatia e uma fala constante, progressiva,
assertiva,
que,
com inusual
facilidade,
conquistaria
quaisquer
que fossem as mentes
e os
corações,
desde
que estivessem
minimamente dispostos
a
ouvi-la. Era
tão exímio orador que,
poucos
minutos depois que abriu a boca,
era
aplaudido
pela maioria das
pessoas.
Confesso que, por um mísero minuto
descuidado,
até
mesmo eu quase
me deixo
conquistar pelos ideais de justiça e
desenvolvimento que
defendia naquele momento, quase
me esquecendo
da
repulsa
que sentia
por ele.
Nunca
se verá unanimidade
nem
nas
mais sólidas maiorias.
Uma
parte considerável dos que se faziam presentes no
comício era
composta por
gente
como eu, que também sentia
repulsa pelo regime. Diferentemente
de mim até
então,
eles
integravam
grupos e
fraternidades,
debates marginais,
movimentos anarquistas radicalizados,
uns
ou outros moderados
no
passado,
revolucionários, engajados
em
manifestos por toda a
República do Álamo. Rafaelo
liderava
o
principal deles: um
grupo anarquista que se extremava
cada vez mais na
medida em que recebia
novos companheiros ainda
mais
idealistas
e
engajados do
que os demais.
Em
pouco tempo, o
grupo liderado
por Rafaelo já
era o mais ativo da Cidade do Álamo, a
capital
da república, e era bom no que fazia, conseguindo manter em segredo
do
governo não
apenas sua existência bem como a identidade dos companheiros que,
dele, participavam.
Rafaelo
veio até mim e se apresentou. No que igualmente me apresentei, foi
direto ao assunto, me convidando a fazer parte do
grupo. Estava
explícito, qualquer
um via
na satisfação de
seu rosto o contentamento ao notar
que me interessaria
pelo convite. Porém,
pedi
uns dias para
pensar
e
Rafaelo me deu então um retângulo
de papel,
com um número de telefone impresso
a
máquina de escrever,
para que
eu o procurasse quando
estivesse pronto para aceitar.
Antes
de se afastar de mim e desaparecer no meio da multidão, emendou
somente que me apressasse em respondê-lo, com
o argumento de que o grupo tinha
pressa. - A semana que vem será muito importante para nós, e
queremos
que participe. - disse.
Tal
proposta mereceu
dois
dias
valiosos
de
uma
reflexão
sofrida.
Enquanto
Jupecê discursava no
comício,
o Secretário de Justiça ia pessoalmente até em
casa, acompanhado de um delegado, um defensor público e um promotor
de justiça, para
cumprir
um mandato de prisão contra papai. Ainda
dentro de casa,
o
delegado,
após
cumprimentar educadamente mamãe,
o prendeu
em flagrante, já
o
defensor
público fingiu
defendê-lo, dizendo
uma
ou duas frases sem muita
conexão
com a
acusação
que lhe era feita pelo
secretário,
e
o promotor de justiça fez
o papel de juiz,
autorizando
a necessidade
de sua prisão.
- O
senhor está preso com as bençãos da lei. - disse, o
promotor.
Papai
foi levado para um prédio
anexo
a Secretária da Casa Civil, acusado de conspirar contra a ordem
pública. Ficou detido por um dia e dez
horas
quando foi encontrado enforcado em
uma
sala improvisada
de cela,
com um lençol amarrado no pescoço, pendurado na janela. Muito longe
de já
não
ter desconfiado
no
momento em
que soube da morte
de
papai,
mais tarde é que descobri verdadeiramente
o
porquê. Não
foi
suicídio como o
regime havia atestado.
Papai fora covardemente interrogado ao
tempo em que
era torturado até
a morte,
e o motivo de
tudo era
porquê não confiavam nele. Àqueles
ares da
república, que
ninguém
desconfiasse
de
ninguém para
o Céu
cair
e o Inferno
se levantar.
O
comício
na praça não foi a única vez em
que
vi
Jupecê Piccolo pessoalmente,
teria a chance de revê-lo, dias
depois, na
despedida de papai. Fizemos
uma
cerimônia de
sepultamento simples,
austera, mas
com todos os amigos presentes.
Mamãe,
incrivelmente,
mesmo
devastada,
tirava
forças de onde não havia, do
deserto inóspito de sua alma,
para
que
se mantivesse firme e
permanecesse
ladeada
a mim enquanto
se prostrava diante do caixão.
Até
que o viu
descendo
à sepultura.
-Tudo
vai ficar bem. Não é mesmo, Edvard?
-Sim,
mamãe. A gente vai superar mais essa perda.
-Não
será fácil viver sem o nosso Áries. Ele era o seu
herói. Não é mesmo, Edvard?
-Sim,
mamãe, mas
ficaremos
mais fortes depois
de tudo isso.
Tudo vai voltar
ao normal,
prometo.
Me
dedicaria
para
cumprir a promessa pelo
decorrer dos próximos dias,
confortando-a
e oferecendo um ombro de filho para que pudesse chorar, porém, ainda
durante o sepultamento de papai,
percebi
que não seria fácil fazer
com que as coisas voltassem de
fato ao
normal conforme
os dias avançassem.
Jupecê
Piccolo apareceu no cemitério para oferecer as condolências do
governo pela morte de papai. Estava
protegido
por um pequeno batalhão de soldados que faziam sua segurança, além
de uma dezena de homens
que o acompanhavam aonde quer que fosse. Dirigiu-se pessoalmente a
mamãe,
que, assim como eu, apenas conseguiu
externar surpresa ao vê-lo entre
os presentes.
Disse
que sentia pela atitude extremada de papai, que o seu suicídio era
uma lástima para todos na república e que já ordenara uma
investigação criteriosa, a fim de que se dirimisse
de
uma vez por todas as
circunstâncias da tragédia.
Acaso
ou prudência, o
Secretário de Justiça não estava por perto naquele momento em que
Jupecê prestou
solidariedade a mim e
à mamãe.
Entre
todos os lugares possíveis
nos quais o
secretário poderia
estar,
era
compreensível que,
para
um assassino, até o mais cínico e dissimulado deles, não estivesse
mesmo
cercado
por parentes e amigos daquele que sabia que havia sido sua vítima.
Para
quem Jupecê,
porventura, estendeu
a mão,
foi
cumprimentado com
respeito.
Tinha
total confiança de que mamãe e eu havíamos acreditado que papai se
suicidara, que
a sua morte se explicava por um ato injustificado de desespero. Antes
que fosse embora, disse-nos ainda que não viera prestar a
solidariedade de seu governo apenas, que uma praça perto de onde
morávamos, aquela em que havia discursado
no
comício,
seria nomeada com o nome de papai como forma de homenageá-lo, que
mamãe receberia uma pensão para o resto da vida e que a
conclusão de minha
formação universitária, a partir daquele dia, estava plenamente
assegurada pelos programas estudantis do governo.
Foi
a
gota d’água em
um balde prestes a extravasar. Nesse
momento, respirei
profundamente.
Desde
então, cresceu a minha convicção de que o
filho da puta
não confiava em papai, que
o via como inimigo,
e que havia mandado o Secretário de Justiça matá-lo por isso, e
mais nada.
Me contive. - Não
será aqui, na
frente de todo mundo,
que vou te matar. - pensei. - Terei
a oportunidade de me vingar no
momento mais
oportuno, bem
lentamente.
Fui
para o quarto descansar um pouco ao
voltarmos para casa, pois estava
exausto mentalmente,
enquanto que mamãe
voltou a mergulhar o dedo indicador da mão
esquerda dentro da xícara de chá. Fazia meses,
quatro
para ser mais exato,
que havia contraído uma infecção na unha que não sarava nunca e
que
não
sabia ao certo
como a
havia
contraído. Malcheirosa
e esverdeada, se
fora decorrente de uma micose, se
limpando
a casa ou se
cozinhando,
nunca
soube.
O
mistério se resumia no fato de que a unha podre, além
de nunca
sarar,
se restringia a um único dedo, o indicador da mão esquerda, e
nenhum
doutor dava jeito; parecia maldição,
coisa mandada pelo
diabo.
Então,
por
conta própria,
mamãe inventou uma solução caseira para tratar a infecção. Duas
vezes por dia, de manhã e no fim da tarde, socava um dente de alho
no
pilão até
ter
formado
um creme,
depois, punha-o na xícara com um pouco de vinagre morno
e mergulhava o dedo dentro da xícara, onde o deixava até que
julgasse tê-lo desinfetado o bastante.
Certa
vez, ao vê-la
com
o dedo mergulhado
na
solução, não aguentei a
curiosidade e
perguntei:
-Que
água fedorenta é essa que você põe na xícara, mamãe?
-Criei
um desinfetante para o meu dedo, Edvard. - ela
respondeu.
- Tomara que funcione.
De
semana
em
semana, a unha
acabou
sendo curada.
Guardei
o telefone
de Rafaelo no bolso de
uma
jaqueta preta
que enfiei
no
fundo do meu guarda-roupa, atrás de uma pilha
de
calças. A decisão eu já havia tomado:
era
um
sonoro sim,
cuja
dedicação não me faltava.
Entrei
em contato,
dizendo então que aceitava, e marcamos de nos encontrar no mesmo
dia.
Eramos,
em
um galpão abandonado cheio de armas,
um sem-número de caras
de
valor e
de mulheres dispostas a
resistir.
Rafaelo me explicou o plano. Resumidamente, tomaríamos o Palácio da
República e mataríamos Jupecê Piccolo,
por consequência, derrubando
o regime. Em
um segundo momento,
com o objetivo de manter a estabilidade e a ordem pública,
imporíamos no lugar
um
governo provisório
linha-dura, pelo menos até
que novas eleições fossem convocadas. - Devolveremos a democracia à
República do Álamo. A vontade popular voltará a ser ouvida e
respeitada.
- explicou,
Rafaelo.
Não
se ouviram protestos ou manifestações de descrença em relação ao
plano. Todos concordaram,
inclusive eu.
Quase
imediatamente após explicar, Rafaelo bateu os olhos em mim
e estranhou o meu olhar inseguro.
Acabou
percebendo que estava abatido, mesmo
com todo o esforço para disfarçar.
-Que
foi, Hespanhol?
- veio até
mim
sob as
atenções
de todos. - Quer compartilhar-nos alguma
coisa
que aconteceu?
Ou
ainda
acontece, não
sei. Pode
dizer, está entre amigos.
Disse:
-Perdi
o meu pai. Bom, não foi bem uma perda, foi
tirado de mim e de minha mãe.
Meu
pai foi
morto.
De
repente, todos arregalaram os olhos para mim. E
Rafaelo
perguntou:
-Como
foi isso, Hespanhol?
-Foi
morto pelo regime e a culpa é de Jupecê, eu não tenho dúvida
disso. Mamãe estava em casa quando ele
foi levado, preso, pelo Secretário de Justiça e
por mais outros homens que
disseram ser um promotor, um delegado e um defensor público.
Tenho
certeza de que o torturaram até a morte, até
que papai confessasse que conspirava contra o regime.
Jupecê
não
confiava nele.
Oposto
do que
eu imaginava, Rafaelo não externou qualquer reação que se
aproximasse com a de uma surpresa quando ouviu que meu pai fora
assassinado. Mostrou-se
como
se já soubesse do que ocorrera. No
instante seguinte, como quem busca reforçar a própria vontade na
vontade de uma outra pessoa, voltou a me perguntar se eu aceitava o
convite de entrar para o grupo, convite, esse,
irrecusável. Respondi que sim, que não somente aceitava como me
empenharia com o melhor e o mais furioso de mim.
-Uma
pergunta: seu
pai conspirava contra o regime?
-Não.
Infelizmente.
Apesar de o meu pai nunca ter se conformado com o golpe tanto
quanto eu,
ele achava, diferentemente
de mim,
que não valia mais a pena lutar pelo que se acredita nesse
país de
merda.
Morreu desiludido.
Se
eu já odiava Jupecê
com
todo o meu ser,
agora, depois de tudo, odeio muito
mais.
Por isso, estou aqui e não vejo a hora
de
estar frente a frente com ele.
Quero
vê-lo sentir só um pouco, não precisa ser muito, da
dor
que fez meu pai sofrer.
Nos
locomovemos do galpão abandonado até o palácio em um comboio
de vinte carros, trinta motos e cinco caminhões, e o
apelidamos
de “Caravana de Assalto”. Os caminhões, locomovendo-se
pelo
meio e na
frente
do
comboio,
serviram para abrir caminho no
trânsito e
suprir
o enfrentamento
armado
contra
a
segurança palaciana;
aos
carros, couberam o transporte da maior parte da tropa, além da
garantia
de
uma
maior agilidade no deslocamento do arsenal;
enquanto
que as motos tinham uma função não menos estratégica:
eram
o nosso pelotão de assalto, a força móvel que nos permitiria
responder
aos guardas e à polícia especial do
governo. Quanta
ingenuidade! A
resposta do governo foi
inesperadamente furiosa.
Antes
disso porém,
ainda me preparava para deixar o galpão quando
o meu celular tocou. Era
mamãe,
emocionada, que foi logo adiantando que tinha uma maravilhosa notícia
para me dar. Com a voz trêmula, me
disse
que estava grávida de
papai,
que havia ido ao médico, pois não se sentia bem, e que lá, então,
deu-se
a confirmação
de sua
gravidez.
Ouvindo-a sem saber como
poderia parabenizá-la,
mamãe disse,
no meio da ligação, que
papai ficaria radiante com a notícia. Concordei
imediatamente. Perguntei
se a criança era menino ou menina e mamãe respondeu que ainda era
cedo para
que
se soubesse o sexo,
que só tinha pouco
mais de dois
meses
que estava grávida. Sem
demora,
Rafaelo
veio
até onde eu
estava
e sinalizou
que chegara o tão
importante momento
de seguir
para o palácio.
- Parabéns,
mãe. Te
amo. - disse-lhe
que teria muito orgulho de mim quando voltássemos a nos ver. - Nós
também te amamos, Edvard. - mamãe
respondeu.
Desliguei
o celular.
Era
vinte
de abril a
data em que mamãe
se defrontaria com o meu derradeiro infortúnio. Havendo
se completado quase
uma semana que
estava desparecido
e
mesmo
apreensiva
com uma
desordem
política desencadeada pela nossa tentativa frustrada de derrubar o
regime de
Jupecê,
considerou
até então meu desaparecimento estranho, mas normal, nada que
merecesse
enorme preocupação.
Tinha
um certo histórico que a levou
a
agir assim. Quando mais jovem, gozando
da onipotência típica daqueles
que têm pouca experiência de vida,
já
fiquei
dias fora de casa sem
avisá-la,
na gandaia, na zoação com os amigos. Talvez tivesse pensado de
forma equivocada que o meu desaparecimento era porquê queria
relembrar os velhos tempos.
Pela
manhã, mamãe fora consultar-se com seu obstetra que a examinou,
garantindo que tudo corria bem com a saúde do bebê. O obstetra a
perguntou
se queria saber o sexo da
criança,
ela respondeu que sim e ouviu então que teria um menino, e eu, o
irmãozinho que
nunca conheci,
que
não teria a oportunidade de ver crescer.
Ao
voltar para casa, deparou-se com a porta entreaberta. Pensou
que fora eu que esquecera
a porta entreaberta ao
entrar em casa,
no
entanto,
não me encontrou em
meu quarto ou em outro cômodo do apartamento.
Acabou
por concluir-se equivocadamente
que
ela própria havia se esquecido de fechar a porta ao
sair de casa e
só
foi
perceber
mais tarde que
pessoas estranhas ao nosso convívio haviam estado em casa no momento
em que saíra para consultar-se.
Com
pressa, tão
logo chegou, colocou
a bolsa no
sofá e foi direto para a área de serviço, onde pôs
um amontoado de roupas sujas dentro da máquina para
lavar. Era o
dia
da
semana que organizava
a casa; tinha
muito a fazer. Seguiu
para a cozinha e começou
a preparar o almoço para
ela e se acaso eu finalmente aparecesse.
Teve
uma má intuição enquanto
cozinhava,
uma
ligeira
percepção
de que
alguma
coisa não ia bem. Voltou para a área de serviço no que terminou de
cozinhar e
retirou uma braçada generosa
de
roupas
limpas
de
dentro
de um cesto para dobrá-las e guardá-las nos dois
guarda-roupas
que
haviam em
casa: o meu e o dela.
Por
primeiro, dobrou uns pares de camisas e calças e os levou até o meu
guarda-roupa. Antes que os guardassem porém, ainda no corredor que
dava para o meu quarto, olhou para baixo e viu uma gota de sangue
ainda úmida, caída no assoalho branco,
e quase deixou as roupas caírem no
chão de tão assustada
que ficou. Passou os olhos no próprio corpo para saber se havia se
cortado
em
algum lugar
e
viu
que o sangue
não era seu. Ao
mesmo
tempo em que guardava
as minhas
camisas
e calças,
imaginou
que
a gota de sangue podia
ser
na verdade minha,
que
eu
é
que havia
estado na
casa e me
ferido de alguma forma que não sabia qual,
e que, por
esse motivo,
é que encontrara a casa vazia e a porta entreaberta. - Continua
sendo um
desastrado, esse Edvard. - pensou.
- Deve
ter ido correndo para a farmácia comprar
curativo.
- por
fim, mamãe
ignorou
a gota de sangue com
a convincente desculpa de que não fazia bem a uma gestante
passar nervoso.
Foi
dobrar então
a outra parte
das roupas limpas
que retirou do cesto para
que pudesse guardá-las no seu guarda-roupa; um
guarda-roupa, me lembrarei
sempre, cujas
portas e gavetas eram brancas, o
restante de madeira
envelhecida
escura e os
pegadores, também me lembrarei,
de metal
bronzeado.
Mamãe entrou
no quarto e se deparou com uma mariposa preta pousada na cabeceira da
cama. Pelo
jeito, aquele
não estava sendo mesmo
um bom dia.
Cansada,
espantou
a mariposa
pela janela e
se sentou na
cama com as roupas dobradas no colo. Não
havia razão
aparente para
que, de repente, estivesse tão tensa e preocupada como
estava
naqueles
instantes,
descobriria
o porquê imediatamente depois.
Passado um
minuto, se levantou da cama, apoiou
nos braços as
roupas que
dobrou e
abriu finalmente
a porta do
meio do guarda-roupa. - Edvard!
- gritou,
sendo
gigantesco o
horror em seu
grito. Viu
minha cabeça
desfigurada,
cuidadosamente
posicionada
bem no meio de
duas
pilhas
de roupas.
FIM

Rapaz, qual seu lance com cabeças?
ResponderExcluirO conto é muito bem escrito e, de fato prende o leitor
A conspiração é tem essa aparência "pouco profissional" de propósito? Me pareceram assustadoramente descuidados, mas considerando seu destino...
Meu lance com cabeças, rs, por quê? Não curte contos capitais, Coletivo.
ExcluirBrincadeiras a parte, obrigado pelos elogios.
Descuido: não poderia encontrar palavra mais propícia p/ descrever os conspiradores da República do Álamo.
Abraço.
Olá! Você é o autor do conto? Se for, parabéns, se não for, parabéns também por divulgá-lo. Não é muito comum, nos dias de hoje, textos assim, com esses assuntos. Enfim, muito legal.
ResponderExcluirBeijos!
vaiumspoilerai.blogspot.com
Lilian, sou sim. Foi eu quem idealizou e escreveu o conto.
ExcluirO tema realmente é bastante incomum. Concordo, rs.
Não estava nada à espera deste final dramático! Adorei o conto! Fico à espera do próximo 😉
ResponderExcluirObrigado, Joao.
ExcluirVolte sempre!
Uau!
ResponderExcluirQue conto incrível, tão incrível que deveria virar um livro ou até mesmo uma mini série. Quantos infortúnios sofreram a família Hespanhol... Mas confessoq ue fiquei com uma pulga atrás da orelha, Existia celular na época em que o conto é narrado?
Franklin, sim, existia celular. O conto se passa em uma ditadura de um país fictício da América Latina, a República do Álamo, localizado no nordeste do Brasil.
ExcluirObrigado pelos elogios.
Wow. Eu não costumo ser grande fã deste tema, no entanto a sua escrita cativou-me, como sempre, até à frase, em que fiquei boquiaberta e só disse "não", de tão apegada que tinha ficado à personagem! Você consegue explorar, sempre, tão bem o universo pessoal de cada personagem da história e é isso que adoro na sua escrita... Criou um momento de alguma distração no meu dia cinzento. E até pelo facto de uma mulher que me parece bastante forte se chamar Beatriz ;)
ResponderExcluirObrigada!
Pseudo Psicologia Barata
Bea, por pouco não choro de alegria ao ler seu comentário. Estou no caminho certo então, não é mesmo, r?!
ExcluirObrigado de verdade.
Você é das pessoas mais gentis que eu conheci nesse último ano.
Volte sempre! A casa é sua, rs.
Roberto, se me permite dizer, os seus contos são bem longos rsrs. Acho que você deveria focar em cada um deles, fazer uma história comprida, mas em forma capítulos. Eles são muito bons para ter não um final concreto. Queria muito uma parte explicando sobre como Edvard morreu. Achei que faltou isso.
ResponderExcluirMas espero que leve como um elogio e que possa ter contribuído para crescimento pessoal. Continue escrevendo! São ótimos textos ^_^
Ana Paula, obrigado pelo comentário e pelos elogios.
ExcluirVamos lá então:
O conto não é grande, nem pequeno, rs. Teve o tamanho que teve porque a história pediu, rs. Muitos personagens, muitos acontecimentos.
Sobre o desfecho de Edvard não ter uma explicação mais detalhada, a explicação está subentendida na própria história, nos acontecimentos que se sucederam, e os assassinos dele também, rs.
Volte sempre!
Roberto, como sempre você surpreende! Amei o conto e o final é incrível, sempre com esse toque fantástico :D.
ResponderExcluirContinue sempre escrevendo!
www.resenhasdelivros.com
Obrigado, Luana, você foi muito generosa nos elogios.
ExcluirContinuarei escrevendo até quando a Vida não me negar palavras para tal.
Abraço.
Correção na minha primeira linha: *até à ÚLTIMA frase.
ResponderExcluirE já agora, conhece Felizmente Há Luar, de Luis de Sttau Monteiro? Embora seja uma narrativa construída para ser representada em teatro, o seu conto lembrou-me bastante dela! Talvez pelo contexto revolucionário, não sei bem.
Bea, não conheço, não.
ExcluirVou procurar conhecer. Obrigado pela indicação.
O enredo da história foi bem dramático, ele tem um final triste (e bem surpreendente).
ResponderExcluirVc poderia separar textos longos em capítulos e letras um pouco maiores, ficaria mais fácil para o leitor ;) Mas, é só uma dica/opinião, o blog é seu.
Pollyanna, a sua sugestão, em parte, foi atendida.
ExcluirAumentei a letra das postagens blog.
Volte sempre.
Olá,Rob!
ResponderExcluirQue conto!
Confesso que me causou um arrepio de medo e tristeza também.
Seus contos sempre me remetem a infância.
Não sei porque sinto isso, quando os leio.
Mesmo? Mas esse conto particularmente também remete sua infância? Era criança quando o Brasil estava sob o domínio de uma ditadura militar? Deve ser por isso então, rs.
ExcluirObrigado pelos elogios, volte sempre!